Vinte anos depois

Nem reparou bem no primeiro dia em que ela apareceu lá no trabalho. Um cumprimento banal, como tantos outros antes desse, afinal esta empresa anda ao contrário da crise e está sempre a contratar, normal. Foi só quando tiveram a primeira reunião, na semana seguinte, que reparou na forma como ela o olhava. Ele conhecia este tipo de olhar, a última vez que tinha visto um tinha sido há muitos anos, na verdade nunca pensou que nesta idade se repetisse. Mas estava a acontecer, naquele momento, e ele sabia que não estava enganado. Uma conversa, um café e dois sorrisos, e de repente ela já lhe parecia perfeita. Tudo tão simples, será que ele ainda tinha aquele jeito de que os homens mais novos tanto se orgulham de ter, não sabia. Mas tudo estava a acontecer e ele não tinha qualquer tipo de vontade de parar.

Lembrou-se da mulher da sua vida, claro, várias vezes. Quase vinte anos de casado não é para qualquer um, motivo de orgulho certamente. Mas as comparações eram inevitáveis, esta cara nova é tão mais bonita, parece tão mais apaixonada, ela ri-se das suas piadas. Pensou quando teria sido a última vez que tinha contado uma graça à sua mulher. Já há muito que ela tinha deixado de se rir delas, e naturalmente ele deixara de as contar. Mas havia mais, algo mais que era tão mais intenso do que ele havia sentido! Havia o cheiro, seria o cheiro?, ou a suavidade da sua pele, ou a forma como ela se entregava no calor da luxúria e do desejo. Tocava-lhe a barriga, tão diferente da que ele conhecia, de novo as comparações, não sentia as estrias que os filhos generosamente haviam provocado na sua mulher em tantos meses de gestação.

O Martim e a Inês. Também havia esse problema, o mais difícil de todos. Os filhos eram tudo o que ele mais amava, em todos os momentos excepto nos fugazes encontros com a sua nova paixão - aí o seu mundo era outro e já não havia nada. Mulher, filhos, contas a pagar, a torneira que pinga à noite, nada. Surpreendeu-se com a facilidade com que era capaz de voltar todos os dias a casa e manter a rotina normal, passar tempo com os miúdos, dormir sestas no sofá e fazer amor aos sábados.

Ela não pedia mais mas ele sentia-se na obrigação de dar tudo. A vida dupla era possível, já o sabia, mas cada vez o desejava menos. A mulher já não o amava, não podia, vinte anos, era normal que já não se amassem nesta altura. Restava o respeito, mas ele sabia que já não a respeitava por esta altura e que para ela era melhor a separação. Sim, era isso mesmo, ela ainda ia a tempo de, como ele, encontrar nova felicidade, para as mulheres é sempre mais fácil. Tinha que o fazer por si mas principalmente por ela, isso mesmo. Os miúdos haviam de compreender, afinal ele não ia a lado nenhum, ficaria sempre por perto. Estava decidido.

Chorou muito, ela. Mais do que ele esperara. O alívio do peso daquele segredo compensava o ar de terror espelhado na face daquela com quem havia vivido quase vinte anos, uma vida, uma vida sem no entanto ter visto antes aquela expressão de dor que ficaria marcada no fundo do peito dele até ao fim dos seus dias. Com a coragem que só as grandes mulheres têm ela ainda lhe disse que depois de ele sair nunca mais voltaria a entrar, e ele sabia que era verdade. Ela não voltava atrás, nunca. Por momentos lembrou-se que aquela era uma das marcas dela que mais o impressionaram quando a conheceu. Há mais de vinte anos, uma vida, ambos mereciam uma espécie de prémio. Não olhou para trás, percebeu que ele próprio também chorava sem querer.

Foi só dois meses depois, quando acordou e de um momento para o outro odiou profundamente a mulher que estava ao seu lado, a tal do sorriso perfeito e da barriga lisa, que ele compreendeu que estava perdido para sempre.


8 comentários:

Pastilhas Júnior disse...

Muito bom João.

Penso que podias criar uma etiqueta específica para este tipo de entradas no teu blog.

Varandas disse...

Obrigado Campeão! :)

Estava mesmo a publicar e pensei nisso, num tipo de etiquetas. Mas primeiro faltava-me o nome, e depois como foi a primeira do género não sei bem se é para continuar, acho que depende da inspiração. Veremos! :)

RRITA disse...

Sim, sim, continua :) Que o nome para a etiqueta há-de aparecer!

Gomes disse...

João, texto muito bom...
Como diria o outro... "vids"!!!
Abraço

MJ disse...

A tua veia (ou artéria, não sei bem) está em grande!

Tinês disse...

Oh pázinho, o que te aconteceu? Que pancada é esta agora?...

Será que fui a última a saber que te dedicas a este tipo de "escrituras"??

Bom, passada esta fase inicial de puro espanto, quero dizer-te que achei bastante bom! Fiquei, contudo, um bocadinho desconsolada por não ter percebido (estava lá??) porque razão ele passou a odiar a mulher nova.

Anónimo disse...

Tinha 23 anos quando o conheceu. E, nessa idade, vibram ainda na pele os romances de primeiras vistas.
Tudo era novo. E como sempre sorria. Sorria para disfarçar a vergonha, sorria porque não sabia o que fazer. E sorria porque era esse o seu jeito.
Era o seu primeiro emprego mas sentiu-se tão bem desde o primeiro dia! De alguma forma logo percebeu que o facto de ter aquela idade lhe assentaria na perfeição no meio daqueles homens maduros. Como poderia não existir um peito disponível para a proteger de tanta vergonha e timidez? E depois havia tanto amor no seu sorriso, uma paixão infinita no brilho do seu olhar... Era impossível que não resultasse.
Claro que não pensou nisso logo no primeiro dia, era tudo tão novo que nem tinha tempo de pensar, nos primeiros dias os momentos de embaraço cansavam-na tanto que chegava a casa e caía como uma pedra.
Mas depressa chegou lá. E era ele. Aquele para quem ela não conseguia parar de olhar. Havia admiração. Tanta que parecia até coisa de outro mundo. E uma vontade enorme de sentir o conforto de estar nos seus braços e fazê-lo despedir aquele ar sério e vê-lo rir no meio de uma brincadeira, vê-lo sorrir no conforto de um carinho. Quis, como nunca, ser de alguém. Pertencer-lhe. Só para o fazer feliz. Uma espécie de desafio, trazê-lo de novo à vida, viver com ele essa paixão que lhe começava a formigar nas entranhas.
E sim, houve uma conversa, um café, vários momentos, vários pretextos, como há sempre, e a história começava a desenhar-se.
Ele era casado e tinha filhos, ela rápido o soube e percebeu que isso era o mais importante da vida dele e por isso admirava-o ainda mais. E o seu desejo não era substituir nada disso na vida dele. Não, ela nunca quereria destruir tal preciosidade. De certa maneira sentia que a magia aconteceria num outro mundo paralelo, que não se cruzaria com este.
Não o queria sempre, não o queria para sempre mas queria estar com ele. O tempo que fosse possível seria o necessário. Sem exigências, apenas pelo prazer das sensações que estarem juntos traria aos dois. Imaginou-o mil vezes, de mil formas na sua cabeça, mesmo antes que acontecesse. E quando aconteceu, não foi melhor nem pior, foi bom. Tão bom, que sentiu algo que nunca tinha sentido. E quis que essa sensação se repetisse.
E repetiu sempre que estiveram juntos. Só os dois, em encontros de tempo contado, como verdadeiros amantes. Ela amava cada segundo que podia disfrutar da presença dele quando estavam a sós. Sentir o corpo dele... O peito dele no dela era das sensações mais incríveis que alguma vez conseguira sentir. Havia paz, segurança, tranquilidade. Sim, ele era isso tudo para ela.
[PARTE 1]

Anónimo disse...

[PARTE 2]
Depois havia sempre aquele momento em que ele tinha de se ir embora e ela sentia-se só, abandonada. Às vezes passava rápido, outras vezes esse momento prolongava-se por lágrimas de noites de sono perdidas... Mas maior parte das vezes não existia nada disso. Ele ia embora e ela continuava feliz. Grata por sentir tudo aquilo, por fazê-lo feliz e por saber que ele saia dali para os braços de quem mais amava neste mundo.
Sim, isso não lhe costumava fazer mossa, ela não sentia essa necessidade de sentir que ele a amava acima de tudo. Bastava-lhe estar com ele e sentir que ele gostava tanto como ela de estar ali. Isso já era perfeito. Porque o haveria de querer dessa maneira egoísta? Tempos depois ele decidiu diferente, mesmo sem que ela alguma vez lho tivesse pedido. E tornara-se só dela.
Na cabeça dela haviam crescido muitos sonhos e expectativas entretanto, e quando isso realmente aconteceu, a verdade é que ela não lamentou o que sabia ser a maior perda da vida dele. Nem foi egoísmo, simplesmente na altura não o pensou dessa maneira.
E a vida poderia até ter sido perfeita para os dois, davam-se bem, dava gosto vê-los juntos, em trocas de cumplicidades sempre sem discussões, felizes! Mas isso só seria possível se não existisse essa coisa do tempo...
O tempo passou. Nem foi preciso muito. Passou por eles. Apanhou-os. E ela percebeu isso esta manhã, quando acordou e o olhou nos olhos, e os seus não raiaram. E aí sim, sentiu por fim um peso enorme de ter roubado aquele homem que agora estaria perdido para sempre… E nem as recordações dos tantos momentos perfeitos que passaram juntos a fizeram serenar.
Levantou-se e saiu. Sabia bem que não haveria nenhum sorriso, nenhum olhar, nenhum carinho seu que pudesse ajudar...