O amigo Justino

Ontem Montalegre acordou mais triste.

Ao ano 2020 teima em ser interminável e cada vez mais e mais terrível. Levou-nos um dos bons, um daqueles (tão poucos) de que toda a gente gosta. 

Dar os sentimentos à família, em especial (permitam-me) à nossa querida tia Graça, é insuficiente e deixa-nos vazios por dentro. Ninguém era indiferente ao Justino. O Justino era aquele amigalhaço tranquilo, com o sorriso mais carismático da vila. Um amigo com um gosto muito apurado pela música e, mais do que isso, pela música com os amigos. Nada o fazia mais feliz que uma noitada de guitarradas entre amigos e a prova disso é que estava sempre a perguntar pela próxima.

Haverá próxima, amigo Justino. Está prometido, seja quando for e onde for.

Até sempre.


O primeiro dia

Não, não é a mesma coisa.

Não é a mesma coisa deixar uma criança no infantário, no pré-escolar e depois na primeira classe. O primeiro dia na primeira classe, descobri hoje, é como uma camisa de forças bem apertada no coração. Ainda para mais depois deste tempo todo, seis meses (seis!) diariamente com o meu parceiro aqui, algo que muito provavelmente nunca mais voltará a acontecer. Tenho estado tão preocupado com o primeiro dia dele que nem me lembrei de pensar no que me poderia custar a mim.

A grande diferença é a consciência que uma criança de 6 anos já tem, a perceção do mundo. Sentiam-se-lhe os nervos a léguas há 3 ou 4 dias, um sentimento que ele não sabia explicar mas que nós bem sabíamos que era ansiedade. Aquela vontade de voltar, misturada com o receio, com a novidade, alguma vergonha, tantos sentimentos que ele ainda é demasiado novo para saber gerir. Que raio, nem os adultos sabem gerir a ansiedade como deve ser, e têm tantos anos disto!

Olhar para ele à porta da escola e perceber que já não valiam a pena as palavras que eu dissesse. Ele já estava noutra. Já estava mentalizado, preparado para enfrentar o primeiro dia do resto da sua vida. Esse é o momento que custa. Largar a mão, deixá-lo ir. A partir dali, o resto já era com ele e ele sabia-o.

Vai correr bem, pois claro. Todos sabemos que vai correr tudo bem. Os pais são uns dramáticos, já sabemos. Mas o primeiro dia da primeira classe não se repete nunca...



Mais um dia normal na escola.

Está muito mau tempo, chuva e trovoada.

A professora diz que hoje não há recreio, porque o dia está péssimo e os meninos podem-se constipar. Todos ficam tristes.

O Pedro diz que quer e quer e quer, nem que seja sozinho.

A professora diz que não é boa ideia.

O Pedro diz que leva guarda-chuva e vai de qualquer maneira porque não tem medo dos trovões.

A professora deixa o Pedro ir, porque já sabe que quando ele faz birras põe os outros miúdos todos nervosos e estraga o ambiente da escola.

O Henrique, que é o miúdo queixinhas, vai bater a todas as portas da escola e dizer a toda a gente que o Pedro vai lá para fora com esta chuva. Ninguém lhe liga, porque a professora do Pedro é a diretora da escola e ela é que sabe.

O Pedro está no recreio de guarda-chuva, a saltitar nas poças de água e a fazer caretas para os colegas todos que estão de cabeças encostadas ao vidro a observar. "Eu vim para o recreio, vocês não, toma toma toma..."

A professora olha para o céu e pensa nas probabilidades de um trovão cair ali mesmo em cima do Pedro. Mas a matemática nunca foi o seu forte.

Mãe

A vantagem de passar os 40 anos é que a gente deixa de ter paciência para as falsas modéstias e para o politicamente correto. É mais fácil dizer o que realmente se sente sem medo de ser mal interpretado. Hoje faz anos a mãe, e hoje falo abertamente dela sem falsos moralismos.

Há dias fui encontrar a minha mãe toda atrapalhada com o telemóvel. Tinha colocado uma frase no facebook sem colocar a origem da mesma (em mais um episódio daquela relação amor/ódio que os nossos pais têm com as redes sociais), o que levou a que toda a gente interpretasse como um desabafo pessoal. Isto iniciou imediatamente uma onde de carinho e solidariedade, dezenas de pessoas foram deixar uma palavra amiga naquele "desabafo". O problema da minha mãe, que não é de hoje mas de há décadas, é que ela nunca soube lidar com este carinho das pessoas, nunca achou que o merecesse.

Sempre considerei a minha mãe uma pessoa inteligente e por isso nunca percebi que ela achasse estranho receber de volta todo o carinho que sempre deu a todas as pessoas que se cruzaram com ela. Eu e os meus irmãos passamos a vida a brincar com isso, porque se ela se dedica a 100% a todas as pessoas, de todas as idades, em ambiente pessoal ou profissional, estava à espera de quê? Ódio, desprezo, em troca?

"A tua mãe foi a melhor professora que eu tive na vida", vocês fazem alguma ideia de quantas pessoas que ao longo da vida me disseram isto? Imaginam o que é ser filho da professora Maria João? A herança é pesada e passamos uma vida a tentar estar ao nível da nossa mãe aos olhos das pessoas. Batalha perdida à partida, obviamente.

Tenho para mim que o segredo desta professora foi ter percebido bem cedo que as crianças e jovens, de todas as idades, gostam de ser tratados como gente. É tão simples como isto. Dando a cada criança a devida importância, a devida responsabilidade, ela foi ganhando o respeito dos alunos e com ele o respeito dos pais dos alunos. Assim se conquista uma comunidade sem querer, tendo apenas o objetivo de fazer o seu trabalho da melhor maneira possível.

É óbvio que ninguém pode agradar a toda a gente, nem mesmo a pessoa incrível que a minha mãe sempre foi. Na vida seremos sempre mal interpretados por alguém, e todos nós também cometemos os nossos erros. Mas eu acho honestamente que para a grande maioria das pessoas de Montalegre a minha mãe está no top 10 de melhores pessoas de Montalegre.

E embora lhe custe (tanto!) admiti-lo, ela sabe que as pessoas gostam dela. E sabe bem que o merece, porque passou uma vida a fazer as coisas bem feitas.

Hoje faz 65 anos, diz que atingiu a terceira idade. É só um número, como qualquer outro. Que festeje muitos, porque somos todos um bocadinho mais felizes quando ela está por perto.

O vírus.

Sabem o que é que me tem preocupado muito nos últimos dias? O peso extra que ganhei depois da operação ao joelho. Estou com quilos a mais que ainda não consegui recuperar e, como todos sabem, o COVID-19 ataca primeiro os gordos.

Também estou preocupado com aquela vizinha do meu primo que anda a trair o marido com o Personal Trainer, porque se há gente que não escapa ao vírus são os adúlteros.

Isto para não falar naquela lá do emprego do meu amigo que de certeza que vai para a cama com o patrão para ter chegado onde chegou. Essas ordinárias são um petisco para o Coronavirus.

E o outro que construiu uma casa e tem um Porsche mas deve dinheiro a toda a gente? Malta com dívidas e ostentação já se sabe, é Corona garantido.

Isto vai passar. Mais cedo ou mais tarde vai passar. Mas que saibamos retirar desta situação improvável as devidas lições. Que se perceba de uma vez por todas que viver a nossa vida já é tarefa suficiente e não precisamos de estar constantemente a querer viver a dos outros. Quando chegar a nossa hora, seja quando for, não vai interessar a idade, a cor, a religião, o estado civil, o peso ou o estado de espírito.

Que no regresso à normalidade saibamos regressar por um caminho melhor.